Território de Irecê se mobiliza em torno da questão ‘O que é ser quilombola?’
Cerca de 200 pessoas estiveram reunidas no auditório da Uneb – Campus XVI em Irecê, dialogando sobre as necessidades e anseios das populações quilombolas e de outras comunidades tradicionais. Debate contou com a presença de lideranças comunitárias, agentes do estado, militantes do movimento negro, entre outros atores sociais
A região que compreende o Território de Irecê, localizada no centro-norte do estado da Bahia, é marcada pela diversidade de segmentos sociais e de disputas entre eles, notadamente no avanço do agronegócio em oposição à agricultura familiar, acesso a terra e a água e também a garantia de direitos a comunidades tradicionais, que historicamente foram negadas em nossa sociedade e pelo estado.
Com este plano de fundo costurado por diversas questões de ordem racial, social, política e econômica, o Centro de Assessoria do Assuruá (CAA) se propôs a promover, por meio do Projeto Juventude Quilombola (projeto patrocinado pela Petrobras), um momento que congregasse o coletivo territorial para dialogar sobre as questões quilombolas, em uma perspectiva propositiva ao nível de políticas públicas afirmativas.
Na mesa de abertura, estiveram presentes representantes do comitê quilombola territorial e estadual, além de membros do movimento negro, do comitê gestor do território, da secretaria estadual de promoção da igualdade racial (Sepromi) e do CAA. Para o coordenador do projeto Juventude Quilombola, César Damásio, esta é uma oportunidade para a sensibilização e a mobilização da juventude para que esta assuma protagonismo na luta pela garantia de direitos. E faz uma provocação: “A abolição da escravatura foi realmente uma libertação ou uma expurgação do negro que foi escravizado e posteriormente largado à margem da sociedade”?
Para João Evangelista de Souza, presidente do Conselho Estadual de Comunidades da Bahia, o espaço do seminário é, sobretudo, um lugar de difusão de informações e também de mobilização e conscientização das comunidades sobre os seus potenciais. “A gente vê que os jovens são cooptados para tantas coisas ruins, porque então não podemos cooptá-los para coisas boas? Então creio que o público jovem presente aqui tem é o público que dará a resposta que a gente espera, são eles que nós vamos incentivar a retomar os estudos, entrar em uma universidade(…) tudo isso pra que a gente forme as lideranças que nós não conseguimos formar lá atrás”, afirma João.
Desafios no acesso às políticas públicas
João menciona também a dificuldade existente no acesso as políticas públicas de ações afirmativas para as comunidades quilombolas. “Nós precisamos quebrar o paradigma da dificuldade no acesso aos editais. Eles são feitos para as pessoas que estão mais preparadas, e as comunidades ainda tem essa dificuldade, pois muitas vezes não há sequer acesso a internet. É preciso pensar mecanismos que aproximem as comunidades das políticas públicas, simplificando, descomplicando os processos burocráticos”, opina.
Por sua vez, Cláudio Rodrigues, coordenador estadual de políticas para povos e comunidades tradicionais, coloca que o estado vem gradualmente amadurecendo e ampliando o alcance das ações afirmativas, avançando da capital para o interior do estado. “A nossa presença aqui, representando a secretária Vera Lúcia e o estado de forma geral, faz parte do posicionamento da Sepromi de interiorizar as políticas de promoção de igualdade racial, em um esforço coordenado do atual governo do estado”, afirma.
Para a plenária, Cláudio explana didaticamente quais são os desafios postos para a secretaria e explica como se dá o operacional do órgão. O objetivo é informar o coletivo acerca das questões práticas e burocráticas no funcionamento das políticas públicas, especialmente no cumprimento dos requisitos por parte das comunidades, o maior gargalo para a chegada das ações afirmativas em várias regiões, ações estas que são garantidas por lei.
Identidade significando protagonismo
A importância da autoidentificação no processo de reconhecimento como povos tradicionais foi uma certeza reafirmada nas discussões. Manacés Manoel Bernardo, coordenador do conselho quilombola no território de Irecê, ressalta a grande concentração de comunidades certificadas e identificadas na região, e a representatividade que isso gera. “Só de comunidades quilombolas certificadas, são 116, e somando com as identificadas, cerca de 150. Apesar disso, nosso território ainda está muito aquém na percepção do ‘ser quilombola’, que é um dos fatores mais importantes na construção da noção de identidade. A partir do momento em que os sujeitos se autoidentificam, eles se fortalecem na busca dos seus direitos”, argumenta ele.
As comunidades e suas necessidades imediatas
No meio dos debates sobre identidade e autorreconhecimento, as comunidades convivem com necessidades básicas comuns ao meio rural, sobretudo no sertão. Valdicléa, liderança da comunidade Batatas, em Ibititá, lembra que sua comunidade convive com a dificuldade de muitas famílias não terem banheiros em suas casas. “Liberaram a construção de banheiros lá pra minha região, só que boa parte deles não chegou ou não terminaram de construir. Como isso pode ser resolvido?”, questiona. Outras comunidades levantaram dúvidas sobre como devem proceder para acessar recursos para ações culturais, infraestrutura e outras demandas imediatas.
Por sua vez Valterlúcia Martins, militante do MST que atua no território de Irecê, questiona a perca dos valores culturais nas comunidades. “A morte cultural dos costumes dos povos negros, tradições como o reisado… o que são os zumbis, o que são os orixás? Nossa história, nosso legado está se perdendo”, sentencia, defendendo que o resgate e a valorização da cultura quilombola é algo fundamental para a existência das mesmas.
Audiovisual a serviço da luta quilombola
A exibição do documentário ‘A Cor do Trabalho’, dirigido por Antônio Olavo, foi um dos pontos altos do seminário. Lançado em dezembro de 2014, a produção que joga luz sobre o empreendedorismo negro no estado da Bahia é uma iniciativa da Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte da Bahia (Setre), que vem desenvolvendo ações de valorização e fortalecimento das raízes históricas do povo negro nos aspectos sociais, econômicos, culturais, étnicos, religiosos e políticos.
Raimundo Bujão, figura histórica do movimento negro no estado e colaborador na produção deste e de outros filmes que tratam das temáticas negras, tem viajado o país apresentando o novo trabalho, e crê que a produção é muito importante para construir um novo entendimento sobre o lugar das minorias na sociedade, servindo de exemplo motivacional, especialmente para a juventude. “Eu descobri na militância que a gente precisava contribuir para a transformação do imaginário da população, estimulando a mudança do olhar para as comunidades tradicionais. Este filme vem nessa premissa, de quebrar as visões estereotipadas que temos a respeito do trabalho, do não se enxergar em determinada função, como o exemplo do médico negro, que é uma quebra de paradigma em uma sociedade que vê essa função de forma elitizada”, explica.
A luta é diária e permanente
O seminário por si só não encerra as discussões nem pretende apresentar respostas para todas as problemáticas ligadas ao povo quilombola. O objetivo maior é o de oxigenar e animar o diálogo entre as comunidades, o estado e as articulações que militam pela causa das minorias. A mensagem que fica é a do fortalecimento do povo quilombola através da união das comunidades, criando um conjunto coeso que vai pautar a busca por direitos de forma organizada, articulada.