Movimentos camponeses inovam na produção de alimentos, diz Bernardo Fernandes, da Unesp
Créditos da foto: site da ANA – Articulação Nacional de Agroecologia
Importante pesquisador da questão agrária brasileira e latino-americana, Bernardo Mançano Fernandes é geógrafo, professor Livre-docente da Unesp. É Coordenador da Cátedra Unesco de Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial e presidente das coleções Vozes do Campo, Estudos Camponeses e Mudança Agrária, publicados pela Editora Unesp. Coordenou o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (TerritoriAL), vinculado ao Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI), da Unesp. É autor de diversos livros, entre os quais, A formação do MST no Brasil. Nesta entrevista o professor expõe sua visão sobre as políticas públicas para a promoção de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN).
Leia entrevista:
IPPRI_Unesp – Qual a relação entre Educação do Campo e Segurança Alimentar?
Fernandes – As duas são políticas públicas criadas para resolver problemas seculares. A Segurança Alimentar foi promovida FAO (Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) com a preocupação de minimizar o problema da fome. Ainda há 800 milhões de pessoas passando fome no mundo. As políticas de Segurança Alimentar visam garantir acesso aos alimentos por pessoas que não podem comprá-los. Além da doação, os governos também podem criar políticas de distribuição de renda que possibilitem a aquisição de alimentos. A Educação do Campo, por outro lado, surgiu através do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) com a preocupação de zerar o analfabetismo no Brasil. Então, esta política se desdobrou e atingiu todos os níveis de educação, desde a alfabetização até o Ensino Superior. Embora ainda não tenhamos eliminado o analfabetismo, foi possível melhorar o acesso à educação para parte da população do campo. A Unesp oferece o único mestrado acadêmico do mundo dirigido para a população do campo, mas já estão surgindo outros. A Educação do Campo nasceu como proposta teórica para defender os territórios camponeses do processo de expropriação pelo latifúndio e/ou pelo agronegócio. Portanto, vai ao encontro da Agroecologia, da Segurança e da Soberania Alimentar. É uma proposta de educação em todos os níveis, que procura compreender o campo como espaço de vida para além da produção de mercadorias. É impossível dissociar Educação do Campo de Segurança e Soberania Alimentar.
IPPRI_Unesp – No Brasil há dois modelos antagônicos de produção agropecuária: o agronegócio e a agricultura familiar ou camponesa. De que forma cada um contribui com a SAN?
Fernandes – O agronegócio contribui com a produção monocultora em grande escala, principalmente para exportação. Este modelo é responsável por 62% do valor bruto da produção. Porém, esta é predominantemente produzida com grandes quantidades de agrotóxicos, de modo que o caráter nutricional fica comprometido. A agricultura camponesa também produz com agrotóxico, embora os principais movimentos camponeses promovam um trabalho para a conversão dessa produção em orgânica ou agroecológica. Este é o grande desafio para garantir a SAN. O agronegócio pode contribuir parcialmente com a Segurança Alimentar e com a Soberania Alimentar, mas dificilmente com o caráter nutricional. A comida saudável será um dos principais temas do século XXI e, com certeza, a processada, produzida em grande parte a partir de commodities, verá seu mercado diminuir, enquanto os alimentos agroecológicos perceberão seu mercado crescer. Nesta perspectiva, a agricultura camponesa poderá contribuir ainda mais do que já o faz. E o agronegócio terá que mudar seu sistema produtivo ou continuará a poluir o meio ambiente e a criar problemas de saúde pública.
IPPRI_Unesp – Na condição de especialista em questão agrária, como o senhor avalia a rede de políticas nacionais voltadas para a Segurança Alimentar: o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar); o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos); o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), entre outras?
Fernandes – A criação destas políticas colocou o Brasil na posição de referência internacional no desenvolvimento da agricultura camponesa, embora não consiga realizar uma reforma agrária plena. Alguns países da África e da América Latina estão criando políticas de desenvolvimento da agricultura camponesa inspirando-se nas brasileiras. Elas são um bom ponto de partida para a criação de um novo modelo de desenvolvimento agrícola. Como também é o caso do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planaplo), do Programa de Agroindustrialização em Assentamentos da Reforma Agrária (Terra Forte) e do Programa de Desenvolvimento Regional, Territorial Sustentável e Economia Solidária (Proinf). Pela primeira vez em nossa história estamos construindo políticas para democratizar o acesso à produção, industrialização, mercados, financiamentos e novas tecnologias. Estas políticas nasceram das demandas dos movimentos camponeses que são hoje os principais inovadores no que se refere à produção de alimentos. O século XX assistiu a revolução verde artificial, com estas políticas podemos promover uma revolução agroecológica que fará bem à terra às pessoas e, claro, ao planeta.
IPPRI_Unesp – Em sua opinião, qual a principal ameaça à política de SAN brasileira?
Fernandes – A principal ameaça é o agronegócio, pois a partir do momento em que as grandes corporações se sentirem ameaçadas pelo novo modelo, elas irão fazer lobbies para obrigar os governos a retirar investimentos das políticas públicas para a agricultura camponesa e redirecionar para o agronegócio. Outra ameaça é a visão hegemônica, mas falsa, de que tudo é agronegócio. A história comprova que a agricultura camponesa não é, nunca foi e nunca será agronegócio. São sistemas distintos com estruturas próprias e relações únicas. Se tivermos governos fortes para enfrentar os impérios transnacionais vamos avançar, caso contrário, poderemos retroceder. Todavia, eu acredito que cada vez menos haverá pessoas que defendam o fast food e a comida industrializada. Assim como as pessoas estão parando de fumar, num futuro próximo elas vão parar de comer comida envenenada.
Fonte: IPPRI_Unesp (Genira Chagas)